quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Exclusão social e Pobreza



 1- O conceito de exclusão social:

Em primeiro lugar, convém sublinhar que a exclusão social não é só a pobreza, se bem que esta seja um importante factor de exclusão social e muitas vezes uma causa/consequência de outros factores.
A produção de exclusão social é inerente ao sistema económico-social em que vivemos. Ao mesmo tempo que se produz uma “normalidade” normativa produz-se a exclusão que deixa de fora, em níveis diferenciados, quem não atinja determinado patamar de consumo material, quem não se conforme a modelos comportamentais e/ou quem não seja capaz de uma vida produtiva: os idosos e os deficientes, quem tenha modelos culturais diferentes como os estrangeiros, quem tenha orientações sexuais diferentes (as pessoas LGBT, por exemplo, têm que enfrentar tantas vezes, para além do estigma social, o desemprego se a sua orientação for abertamente assumida ou expulsão de casa dos pais no caso dos/as jovens etc.), modelos de normalidade/saúde mental (os doentes e deficientes mentais continuam a ser muitas vezes excluídos), os toxicodependentes e alcoólicos, os sem-abrigo etc.).
Pode-se assim dizer que, para lá da cidade normalizada, há um mundo.
Para lá, muitas vezes, num sentido figurado, porque a exclusão faz parte da própria cidade e estamos condenados a esbarrar com ela por mais que a tentemos dessensibilizar. Mas para lá também, outras tantas vezes, em sentido geográfico próprio: porque a cidade produz a exclusão enquanto margem e enquanto marginalidade e não se resigna a que ela continue a ocupar o seu centro. Empurrar os excluídos para a periferia, para longe dos postais turísticos e dos grandes eventos, criar guetos, produzir espaços limpos de sem-abrigo como os centros comerciais são algumas das formas de exclusão geográfica.
Para além disto, sabemos que os/as mais privilegiados/as tendem a barricar-se em condomínios privados de forma a evitar o mais possível cruzarem o seu espaço com o dos excluídos. A sua cidade performativa é aquela que produz eficazmente a invisibilidade da exclusão, que mantém o sonho perverso de varrer para debaixo do tapete todos os indesejáveis.
Refira-se ainda que a exclusão social é também imaterial: é exclusão do conhecimento produzido colectivamente pela humanidade, exclusão das ferramentas para o obter, como por exemplo a iliteracia ou a info-exclusão, e produção de exclusão das capacidades e competência críticas que permitiriam usufruir deste património de conhecimento e também produzir mais conhecimento.
A exclusão social é, ainda, exclusão de um mundo simbólico e de desejo consumista. É, no Ocidente, produção de uma frustração tanto maior quanto se depara com um mundo materialmente rico, disponível, mas que não se consegue alcançar. É, assim, exclusão da auto-estima e do sentimento de capacidade de fazer. Uma exclusão esta que está sempre no coração do ciclo da pobreza.

2- A Pobreza em particular

Relativamente à pobreza em particular, saliente-se que ela é um nó central no tecido da exclusão social. É ela que ameaça todas estas figuras indesejáveis ou “anormais” no sentido de Foucault e ela potenciará muitos dos males sociais que lhes são infligidos.
Olhemos em primeiro lugar para o fenómeno da pobreza no Primeiro Mundo, no mundo dos ricos, e sobretudo em Portugal. A União Europeia, a região em que as desigualdades sociais são menos acentuadas, declarou este ano o “Ano Europeu Contra a Pobreza e a Exclusão social”. Mas não parece: a pobreza atinge 78 milhões de pessoas, isto é, 16 por cento da sua população total (dados incluídos no Eurobarometre sobre pobreza, 2010)
Nem em Portugal parece que estejamos no Ano contra a Pobreza: estruturalmente, um/a em cada cinco portuguesas/es encaixa na categoria de pobre (segundo Alexandre Azevedo Pinto, na revista Vírus número 8). Refira-se que mais de metade das famílias pobres são de trabalhadores e os desempregados são menos de 5% do número de pobres (idem) e que, entre os trabalhadores com mais de 18 anos, cerca de 12% estavam em risco de pobreza em 2007 (SILC, Inquérito Europeu às condições de vida e rendimento, 2008 income data de 2007 – número que significa que ganham menos de 60% do rendimento médio nacional). Conta-se ainda entre os pobres um número significativo de reformados: cerca de dois milhões dos 2,7 milhões de pensionistas vive abaixo do limiar de pobreza (João Romão, Revista transform, versão portuguesa, número 2). Esta pequena amostra de dados deveria ser suficiente para desmontar o discurso de culpabilização do pobre pela sua pobreza que é típico de certas direitas e que conseguiu criar raízes numa parte do senso comum… “O pobre é pobre porque quer, porque não trabalhar, porque é um incapaz.”
E, a esta pobreza estrutural, aquela que permanece constante ao longo de décadas, soma-se, neste ano europeu, a pobreza proveniente da crise provocada pelos exagerados créditos ao consumismo. A história é mais que conhecida: o colapso financeiro de algumas instituições financeiras levou a uma nacionalização das dívidas e essa nacionalização das dívidas deu lugar quer a privatizações de empresas públicas apetecíveis com vista ao seu pagamento quer ao apresentar da conta do desastre aos trabalhadores/as.
Os mais pobres irão pagar esta crise com mais desemprego, com quebras nos salários, com redução das prestações sociais. O Relatório da Rede Europeia Anti-pobreza: Coesão social em risco, o impacto social da crise e do pacote de retoma, Dezembro de 2009 aponta para as consequências graves da crise nos mais pobres: “as despesas extraordinárias decididas pelos governos da EU para salvar os bancos e dar apoio às indústrias em queda aprofundaram o impacto natural da recessão, resultando em deficits públicos enormes. As acções para reduzir o deficit público estão a recair injustamente sobre os pobres.”
E o nosso modelo económico assente até agora em baixos salários, numa precarização forte (e a precarização é a ameaça permanente de pobreza) mas com uma baixa taxa oficial de desemprego vê-se transformado num sistema em que se mantêm estes primeiros dois factores causadores de pobreza a que agora se soma o crescimento do desemprego.

3- As respostas políticas dominantes e a pobreza

Se se pode afirmar que a pobreza é uma questão económica (porque este sistema económico produz riqueza e pobreza), também se pode dizer que as formas do Estado lidar com a pobreza fazem dela uma questão política (da prioridade ou não dada ao combate à pobreza, das escolhas de meios para fazer este combate etc.) Sintetizemos, de forma demasiado esquemática, as linhas políticas principais disponíveis para responder à pobreza no mundo dos ricos.

3.1- O liberalismo é uma posição política e económica tradicional do sistema capitalista que defende um Estado mínimo. Daí que segundo a direita neo-liberal, que foi hegemónica a partir dos anos 80, a intervenção económica e social do Estado seja nociva. Nozick, por exemplo, apresentava os impostos ou qualquer outra forma de intervenção estatal no sentido de redistribuir a riqueza social como um roubo a quem ganha merecidamente dinheiro. Assim, a riqueza ou pobreza seria apenas questão de mérito, de talento ou consequência de escolhas pelas quais se deve responsabilizar cada um e a intervenção do Estado para diminuir o fosso social seria ilegítima. Além do mais, o dogma neo-liberal é de que o mercado livre e sem intervenção, apenas regulado por uma “mão invisível”, geraria naturalmente mais riqueza (já que o Estado estrangularia o investimento) e todos/as ficariam a ganhar com isso. Segundo esta teoria, qualquer apoio aos mais desfavorecidos economicamente deverá ser feito apenas na esfera privada enquanto esmola.
Este permanece, no fundo, o modelo dominante nos EUA (depois da intervenção estatista do New Deal de Roosevelt que se seguiu à crise de 29). Mesmo Obama começou a vacilar em termos de popularidade e teve de introduzir mudanças quando quis alargar a todos os cidadãos o esquema de seguros de saúde privados que deixa de fora milhões de pessoas num país que não conta com um sistema nacional de saúde. Politicamente, Schwarzenegger, o exterminador implacável de impostos, representa o pior da política neo-liberal, tendo levado quase à bancarrota o rico Estado da Califórnia e impondo agora cortes nos sistemas de apoio social de forma a manter impostos baixos, sobretudo para os mais ricos.
E é o eco destas teorias que ouvimos no discurso da direita nacional que afirma que medidas como o Rendimento Social de Inserção ou o Subsídios de desemprego etc. são apenas apoios à preguiça e que defende reduções de impostos sem demonstrar o que isso significa em termos de serviços públicos.
Com a crise internacional, depois de um primeiro momento em que nenhum neo-liberal ousava falar contra a intervenção estatal na economia porque era ao Estado que se pedia que investisse o dinheiro para salvar bancos, voltam agora as receitas neo-liberais a ser cartilha pela qual se regem os planos anti-crise.

3.2- Oposta a esta posição encontrávamos tradicionalmente uma esquerda social-democrata. Nascida dos movimentos operários reformistas da Segunda Internacional, a social-democracia opõe ao paradigma não intervencionista a ideia de que o Estado deve, no interior do sistema capitalista, intervir de forma a redistribuir as riquezas de forma e, nomeadamente, a combater a pobreza.
Ao movimento social-democrata juntou-se a teoria económica de Keynes que pugnava por uma promoção do investimento público e que constituirá a justificação económica de políticas intervencionistas. Este foi o modelo dominante na Europa do pós-guerra, até que Thatcher derrotou a esquerda e se iniciou, também aqui, uma mudança de paradigma que levou muitos dos seus defensores a encontrar uma “terceira via” que nada mais significava que uma capitulação ao liberalismo.
De forma diferenciada, o modelo social europeu, parecia responder mais adequadamente à necessidade de uma redistribuição da riqueza que providenciasse um apoio mais adequado aos mais desfavorecidos. O modelo nórdico de Estado-Providência, chamado Welfare-state, com impostos altos, forte redistribuição social e serviços públicos de qualidade foi o símbolo maior da social-democracia. A social democracia implementou medidas como o Rendimento Social de Inserção (ou Rendimento Mínimo Garantido) e os serviços públicos de educação e de saúde que correspondem a um avanço civilizacional. Apesar de tudo, refira-se que as intervenções social-democratas mantiveram desigualdades económicas fortes e situações de pobreza até no Primeiro Mundo. E mesmo teorias como a “igualdade de oportunidades”, a ideia de que todos teriam direito ao mesmo ponto de partida em termos de condições de vida, sempre foram mais um ideal regulador do que uma realidade, uma vez que estas sociedades continuaram a reproduzir as diferenças sociais. As medidas contra a pobreza surgiram sempre aos olhos dos mais exigentes como medidas justas mas escassas, que não alteravam fundamentalmente as injustiças e que pareciam ser apenas cuidados paliativos que não erradicavam o mal fundamental.
E sublinhe-se principalmente que este equilíbrio redistributivo não correspondeu apenas a uma tentativa política de encontrar um meio termo no capitalismo mas foi, sobretudo, o resultado de uma relação de forças, de lutas fortes lutas sindicais dos trabalhadores e de uma geo-política própria com a pressão do suposto igualitarismo do “socialismo real”. Direito a férias pagas, ao salário mínimo, à reforma, foram conquistados mais do que dados por uma teoria política protectora vinda de uma elite simpática. E assim que a correlação de forças mudou, a elite social-democrata alterou a sua posição política de forma a aproximar-se do liberalismo.
Em Portugal, o Estado-providência nunca passou do estado larvar alcançado depois do 25 de Abril. E desde muito cedo foi a social-democracia do PS que se encarregou de o enfraquecer ou mesmo tentar desmantelar em nome das políticas do FMI e metendo o socialismo na gaveta. Aqui, tal como um pouco por toda a Europa, desfez-se a perspectiva social-democrata e os seus impulsionadores voltaram-se para as receitas de direita apesar de manterem muito da retórica social-democrata: assim é em nome dos serviços públicos que se privatiza e se destrói o serviço público. Sendo hoje o PS aquilo que se designa por social-liberal.
A presente crise acelerou este processo e o Plano de Estabilidade e Crescimento do Governo, colocando o combate à pobreza como primeiro sacrificado, privatizando o mais rentável do sector estatal, reduzindo o investimento público, diminuindo salários, atacando a segurança social, torna-se o principal instrumento desta política. Medidas como a redução progressiva do subsídio de desemprego ou o corte cego de 130 milhões de euros no RSI parecem saídas directamente das cartilhas de Milton Friedman ou de Hayek.
Resistir ao PEC do centrão é uma tarefa política central para quem tenha uma outra perspectiva sobre a justiça social. Ao fazê-lo devemos de ter consciência de que nos encontramos numa situação defensiva. Isto é, a defender medidas que garantidamente não erradicam a pobreza, que são apenas garantias dos mais básicos direitos humanos mas que mesmo essas parecem hoje ser medidas revolucionárias.

4- Capitalismo e pobreza

Últimas notas para olhar para além do Primeiro Mundo e das suas respostas políticas à crise.
A razão profunda da pobreza e das desigualdades sociais está no sistema económico em que vivemos. A permanência das injustiças sociais tem desmentido a possibilidade de um capitalismo de rosto humano. Mesmo se o Norte conseguiu um patamar de riqueza que permite que os mais pobres entre si tenham tido apoios sociais que são impensáveis noutros pontos do planeta, devemos recordar que a “nossa” riqueza é conseguida à custa da pobreza do Sul com a conivência das elites locais, através de mecanismos como o da dívida, através da exploração de matérias primas.
Se alguns dados sobre a pobreza em Portugal eram necessários para desmistificar a ideia do “país de sucesso”, nem sequer será necessário apresentar o óbvio no Sul do Planeta: biliões de seres humanos não têm acesso a água potável, ou a saneamento básico, ou qualquer cuidado de saúde (ainda ontem o jornal Público anunciava, segundo um relatório da ONU-Habitat feito nas vésperas do Fórum Urbano Mundial, que 830 milhões de pessoas vivem em “bairros de lata”...). Dois milhões morrem de fome por dia num mundo que produz hoje o dobro do que seria necessário para toda a população mundial e metade da comida produzida é desperdiçada (segundo o relatório do Programa da ONU para o Ambiente 2009) e produz muito mais do que o planeta pode sustentar. E se falharmos, como se costuma dizer, não há planeta B. Aliás, diz o relatório do PNUD 2007 que as alterações climáticas que estamos a produzir vão, para além de tudo o mais, piorar as desigualdades sociais.
Uma vez que se produz no mundo suficiente riqueza material, fica claro que apenas a desigualdade na distribuição da riqueza justifica a existência de pobreza em larga escala. Acontece que o capitalismo não vive sem o motor da desigualdade brutal e que as elites económicas não aceitam uma justa distribuição de riqueza. Daí que a luta contra esta situação seja um combate profundo por um outro mundo.

Texto-base da intervenção feita num debate sobre Racismo e exclusão social, 20 de Março de 2010, Odivelas

2010-03-24 19:29

2 comentários:

  1. A razão profunda da pobreza e das desigualdades sociais está no sistema econômico em que vivemos. A cidade produz a exclusão enquanto margem e enquanto marginalidade. Empurram os excluídos para a periferia, para longe dos postais turísticos e dos grandes eventos, criar guetos, produzir espaços limpos de sem-abrigo como os centros comerciais são algumas das formas de exclusão geográfica, isso é uma formas que possui dinheiro varrer para debaixo do tapete essa população.

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  2. Elaine, não são considerados fatos, para a nossa atividade, os artigos científicos ou entrevistas dadas em jornal. Fatos são notícias diárias de qualquer meio. Ainda, o seu comentário vai na direção de um resumo da notícia.

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