segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Urbanização de favelas

Estud. av. vol.17 no.47 São Paulo Jan./Apr. 2003

CRIAÇÃO ARQUITETURA

 
Paulo Bastos



NO PROJETO de urbanização do conjunto de favelas por nós elaborado para o Programa Guarapiranga, a postura assumida, considerada como responsabilidade fundamental do arquiteto, foi a de trabalhar com os moradores desde a concepção, fazendo com que participassem da formulação dos seus próprios espaços públicos e familiares, assimilando o conteúdo dos problemas a enfrentar e discutindo as alternativas para uma possível solução.
Dessa forma, a necessidade de transferência dos assentados em áreas de risco para outros locais da favela, o alargamento ou abertura de vielas, com impacto em várias habitações - para possibilitar acessos adequados a todos - e a proposta de criação de espaços de convivência coletiva, foram assimilados pela comunidade em um processo de discussão pelo qual se objetivava a consolidação de incipientes princípios de organização, habilitando a comunidade a participar da construção dos espaços criados e, posteriormente, de sua gestão. Autogestão, portanto.
O corte das verbas (previstas) necessárias à condução desse processo interrompeu sua continuidade, frustrando uma experiência rica e promissora que visava, também, a resgatar o repertório cultural de cada grupo (usos, costumes, culinária etc.) como parte importante no reconhecimento de sua identidade.


No Jardim Floresta, os projetos basicamente criaram um sistema de vielas para pedestres (secundárias) nas encostas, articuladas a vielas de fundo de vale (principais) aproveitando o máximo possível o existente. A elas acoplaram-se algumas áreas livres compondo um conjunto, ao mesmo tempo, de espaços abertos de uso comunitário e acessibilidade às moradias, permitindo trânsito esporádico de caminhões de lixo, ambulâncias, bombeiros, caminhões de manutenção das tubulações de esgoto etc. no interior da favela. A coleta de águas pluviais nas vielas secundárias se dirige para os córregos canalizados dos vales; a de esgoto, para interceptores ligados à rede oficial.






No caso de Imbuias I, o projeto propôs a canalização do córrego São José, afluente importante da represa, ao longo do qual se desenvolveu e se consolidou a favela, e da linha d'água que nele desemboca, para dotá-la de um eixo central de acessibilidade, com as mesmas características do sistema adotado no Jardim Floresta, inclusive em relação à coleta e ao despejo de águas pluviais e esgotos. Os troncos de abastecimento de água potável e as redes de força e iluminação acompanham também a linha das canalizações.
Da mesma forma, a canalização fechada do córrego foi pensada em termos de agregação, antes inexistente no assentamento, dos espaços públicos de convivência e uso de pedestres previstos.






À medida, porém, que a urbanização foi implantada, os trechos de encosta, antes abandonados e incorporados pelo projeto às áreas públicas, foram ocupados pelos moradores.
Uma negociação bem-sucedida, conduzida pelas equipes de acompanhamento social da Prefeitura, conseguiu recuperar tais áreas, onde, então, foram projetados equipamentos urbanos dedicados ao uso da comunidade. Uma celebração simbólica deste fato dar-se-ia com sua participação na construção e na pintura de uma parede-brinquedo sinuosa, que permite a escalada e a travessia das crianças por meio de fendas e seteiras, espetáculos de bonecos através de uma janela proposta para esse fim, bem como rabiscos a giz de caras e roupas nos vultos humanos nela desenhados. Como parte significativa dessa celebração, em um grande setor da superfície da parede, pretende-se que as pessoas imprimam em cores diversas a marca de sua própria mão, inscrevendo e escrevendo nela o respectivo nome, como uma espécie de tomada de posse comunitária da favela urbanizada.
Em ambos os assentamentos, para os removidos das áreas de risco, foram propostas novas habitações, com tipologias diversas, de modo a atender programas familiares diferenciados e condições topográficas desfavoráveis. Paisagisticamente, o elemento mais importante é a arborização, formada por espécies frutíferas.
Assim, mais do que em um projeto de saneamento, trabalhou-se em um projeto de identificação da comunidade organizada com seu próprio espaço, abrindo a possibilidade de que ela também assumisse, em sua inserção urbana, uma identidade cultural específica.


As favelas Jardim Floresta e Imbuias I, na Capela do Socorro (Região Sul de São Paulo), integram o projeto de urbanização elaborado pelo arquiteto Paulo Bastos e equipe, de um conjunto de quatro favelas do Programa Guarapiranga; a primeira favela está com suas obras terminadas e a segunda, parciamente executada.
Paulo Bastos, arquiteto, é professor-titular da Faculdade de Arquitetura da Universidade Católica de Santos.
O projeto do Jardim Floresta recebeu o "Grande Prêmio Ex-Aequo de Urbanismo da 4ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo" (para obras executadas), concedido pelo júri composto dos arquitetos Acácio Gil Borsoi (Brasil), David Reznik (Israel), José Forjaz (Moçambique), Francine Houben (Holanda), Paulo Bruna (Brasil), Sylvia Ficher (Brasil) e o crítico Jorge Glusberg (Argentina). Os Projetos do Jardim Floresta e Imbuias I integraram a Mostra Brasileira na Bienal Internacional de Veneza, com o tema "Favelas Upgrading", por escolha da Fundação Bienal de São Paulo, encarregada pelo governo federal de montar a referida mostra.
 

Vila Viva: intervenção radical no Aglomerado da Serra

Vila Viva: intervenção radical no Aglomerado da Serra

O Programa Vila Viva, executado no Aglomerado da Serra, região centro-sul de Belo Horizonte, chama a atenção pelas proporções. De acordo com informações da URBEL, a intervenção abrange seis vilas e vai afetar cerca de 50 mil pessoas. A obra é a construção de uma grande avenida, que vai unir a Av. Cardoso, no bairro Santa Efigênia, região leste da capital, à rua Caraça, na Serra. Serão 1.635 metros de extensão e duas pistas de rolamento, com 16 metros de largura. Além da alteração do sistema viário, o programa prevê a construção de cerca de 1500 unidades habitacionais, em 10 conjuntos, para onde serão deslocadas famílias removidas em função das obras ou retiradas das áreas de risco.
Apesar de atrair a atenção de outros estados e capitais - o governador e engenheiros do Rio de Janeiro, por exemplo, estiveram aqui para conhecer de perto o Programa -, a intervenção dá margem para questionamentos de moradores e especialistas.
A antropóloga Clarice Libânio, coordenadora do Favela é Isso Aí e ex-funcionária da URBEL, pondera: “intervenções desse porte podem abrir uma ferida no tecido urbano, cortando, rasgando, separando, seccionando. É claro que traz benefícios para algumas parcelas da população, principalmente, nesse caso, aquelas que vão passar de carro pela vila”.
O grande número de remoções necessárias para a obra vai afetar a vida dos habitantes do Aglomerado da Serra. De todas as pessoas que foram ou serão deslocadas, 75% optaram por ficar no próprio Aglomerado, segundo dados da URBEL. O restante preferiu receber a indenização, que tem valor médio de 20 a 22 mil reais. “A pessoa pode escolher o dinheiro ou o apartamento no próprio local. Às vezes, a casa é tão precária que o valor de avaliação é 3 mil reais. Quando isso acontece, nos convencemos a pessoa a aceitar os apartamentos, porque a família tem um ganho econômico e melhoria da qualidade de vida. Se depois disso, a pessoa não quiser o apartamento, que vale 32 mil, muitos optam por ir para o interior com o dinheiro”, explica o coordenador social do órgão, Aderbal de Freitas.
Na opinião de Maurício Libânio, sociólogo com décadas de experiência em urbanização e regularização fundiária nas favelas, a indenização quase sempre não é um bom negócio, pois o valor recebido, na maior parte das vezes, só dá para comprar moradia na região metropolitana ou em outra favela, não gerando melhoria na qualidade de vida dessas pessoas. “O pobre que precisa de um lote, hoje, não compra em Belo Horizonte, ele vai para a região metropolitana, paga um preço social enorme e vai sendo excluído. Ele vai para uma cidade vizinha e não arruma emprego em BH, o patrão quer evitar o vale transporte”, exemplifica. O representante da URBEL explica que o pioneirismo no projeto está no fato de ele tentar manter as relações que as pessoas já tinham anteriormente, por isso, a insistência para que as pessoas fiquem na comunidade.
A regularização fundiária é outro gargalo, de acordo com Maurício Libânio. Segundo ele, este é um problema que assola os habitantes de prédios construídos pelo poder público na cidade. Aderbal de Freitas diz que para o Aglomerado da Serra este problema já está sendo resolvido “Na Serra, a regularização está prevista para acontecer à medida que as áreas forem urbanizadas, aí já se vai trabalhando a regularização. O título de propriedade deve sair em 3 anos, período de cronograma da própria obra”, afirma Freitas.
A mudança para as moradias verticais também apresenta algumas implicações que merecem uma solução que atenda melhor aos removidos que têm imóveis comerciais, avalia Maurício. As pessoas que têm comércio no lote de casa, por exemplo, ficam prejudicadas, pois nos apartamentos a atividade não é possível, é o que pontua o especialista. “A pessoa tinha uma padaria, ela é indenizada pela benfeitoria, mas não recebe pelos lucros cessantes”, avalia Libânio.
A professora Nilma Alves, 26 anos, é uma que terá prejuízos econômicos com a mudança. Na opinião dela, a obra pode até ser boa, mas o dinheiro que ela vai receber pela casa onde mora não a satisfaz. “A obra pode até ser legal, mas essa indenização pra mim não é legal. Eu trabalhava, eu perdi meu serviço porque a escola onde eu trabalhava não dá vale transporte. A gente não sabe o que vai fazer com a indenização, nem casa para comprar a gente achou”, conta.
De acordo com ela, o valor a receber não dá para comprar nada por perto. “A casa que a gente tem por aqui, se for para comprar por aqui a gente não consegue com o valor que a gente recebeu. O pessoal todo subiu o valor das casas”, revela. Ela completa: “Eu não tenho vontade de morar nos prédios, aqui em casa tem área, tem espaço, tem três quartos, pra mim apartamento é sem espaço. Eu tenho um quintal, tenho uma loja, que estava alugada. Eu perdi uma fonte de renda, agora a loja esta parada porque nós vamos sair. Aí a gente não aluga mais. Aqui em casa todo mundo vai perder o emprego”, adianta.
Maurício Libânio reflete a opinião de especialistas e movimentos sociais, que apontam que há outras opções mais viáveis para o desadensamento da Serra e a garantia das melhorias urbanas. Entre estas opções está a construção de habitações horizontais, que apresentam menos problemas relacionados à gestão condominial.
Uma das moradoras atingidas pelas obras, Claudilene Lopes de Oliveira, 27 anos, está achando a obra bonita, mas não vai querer se mudar para os prédios, embora planeje usar a indenização para comprar outro imóvel no próprio aglomerado. “Se eles forem me indenizar eu não vou sair daqui, eu vou comprar uma casinha perto daqui. Pra mim aqui é um lugar melhor pra tudo: hospitalar, se não tiver dinheiro vai a pé pro centro. Eu quero comprar outra casa, apartamento eu não quero, não. Eu quero mais liberdade para os meus filhos, eu tenho três filhos”, diz.
Embora esteja gostando das alterações, o medo de Claudilene Lopes é que com a ocupação dos prédios o local vire uma espécie de Cidade de Deus, subúrbio carioca, ou Cingapura, em São Paulo.
Segundo Aderbal de Freitas, esta não é uma preocupação só dos moradores. “É uma preocupação também da URBEL. Em outras experiências, até em BH, a maioria deu muito certo, conjuntos que hoje estão ocupados e de maneira harmônica, na medida do possível”, observa. O coordenador explica que já existe uma estratégia de prevenção contra a desorganização “É um trabalho intenso de preparação para a nova realidade que irão enfrentar, na relação com as pessoas, queremos investir na geração de ocupação e renda para que as pessoas tenham condições de se manter. Tem um aspecto também urbanístico que ajuda a contribuir com o processo de desfavelização: cada bloco terá apenas oito famílias, um número menor de famílias que irá dividir a área comum”.
“Com benefícios e prejuízos, esta é mais uma das grandes obras que vêm ocorrendo na cidade nos últimos tempos. O papel da população é participar das discussões, por mais que o sentimento seja de falta de abertura. Só o envolvimento da população em todas as etapas do processo pode tornar melhor qualquer tipo de intervenção”, constata Clarice Libânio.

Veja outra matéria sobre intervenção semelhante em http://www.favelaeissoai.com.br/noticias.php?cod=8


Vila Viva em números

O Aglomerado da Serra tem uma área de 1,4 milhão de metros quadrados e faz limite com o Hospital da Baleia, o Parque das Mangabeiras e com os bairros Paraíso, Santa Efigênia São Lucas e Serra. É formado pelas vilas Marçola, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora da Conceição, Novo São Lucas e Santana do Cafezal. De acordo com dados da URBEL, são 46.086 moradores em todo o Aglomerado, número esse que os movimentos sociais questionam, estimando em mais do dobro a população total residente no local.
A idéia de implantar o Programa Viva Vila na Serra surgiu através da elaboração do Plano Global Específico, instrumento de pesquisa e planejamento realizado nas vilas e favelas, tendo como empresa consultora responsável a Dam Engenharia.
Para implantar o Programa, a Prefeitura vai utilizar 171,5 milhões de reais. Deste montante, 113,3 milhões de reais são financiados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), com contrapartida de 25% da Prefeitura, e 58,2 milhões de reais pelo Governo Federal, através do Programa Saneamento para Todos, da Caixa Econômica Federal, com contrapartida de 10% do município. O término da obra, que já está em andamento, está previsto para 2008.
O Programa também inclui obras de pavimentação, rede de drenagem, construção de escadarias e muros de contenção em aproximadamente 23,8 mil metros lineares de becos. Faz parte do Vila Viva a construção de um parque esportivo, num terreno de 20 mil m² cedido pela Fundação Benjamin Guimarães.
Atualmente, o empreendimento está gerando 450 empregos. Aproximadamente 80% da mão-de-obra é de trabalhadores residentes no próprio Aglomerado. A estimativa é que no auge das intervenções sejam criados em torno de 1.500 mil postos de trabalho. Uma iniciativa nesse sentido, em funcionamento desde março de 2006, é a Cooperativa de Costureiras, que já recebeu encomenda para a confecção de 200 uniformes para os trabalhadores das empresas que executam as obras. Outro curso a ser oferecido em breve é o de Capacitação de Mão-de-Obra em Construção Civil.

VEJA FOTOS DAS OBRAS em http://www.favelaeissoai.com.br/galeria.php


FONTES


1) Aderbal de Freitas – coordenador social do Programa Vila Viva
Telefone: Assessoria de comunicação da URBEL – 3277-4959
2) Maurício Libânio – especialista em regularização fundiária
Telefone: 3555-1196/1197
3) Claudilene Lopes de Oliveira – moradora do aglomerado
4) Eva Gonçalves Pereira – moradora do aglomerado
5) Nilma Alves – moradora do aglomerado
6) Eliene Ferreira – moradora do aglomerado

Informações para imprensa: Edilene Lopes e Luciana Matsushita – (31) 3282-3816 begin_of_the_skype_highlighting              (31) 3282-3816      end_of_the_skype_highlighting

Colaboradores: Edmar Pereira da Cruz
José Roberto Alves Moreira

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Exclusão social e Pobreza



 1- O conceito de exclusão social:

Em primeiro lugar, convém sublinhar que a exclusão social não é só a pobreza, se bem que esta seja um importante factor de exclusão social e muitas vezes uma causa/consequência de outros factores.
A produção de exclusão social é inerente ao sistema económico-social em que vivemos. Ao mesmo tempo que se produz uma “normalidade” normativa produz-se a exclusão que deixa de fora, em níveis diferenciados, quem não atinja determinado patamar de consumo material, quem não se conforme a modelos comportamentais e/ou quem não seja capaz de uma vida produtiva: os idosos e os deficientes, quem tenha modelos culturais diferentes como os estrangeiros, quem tenha orientações sexuais diferentes (as pessoas LGBT, por exemplo, têm que enfrentar tantas vezes, para além do estigma social, o desemprego se a sua orientação for abertamente assumida ou expulsão de casa dos pais no caso dos/as jovens etc.), modelos de normalidade/saúde mental (os doentes e deficientes mentais continuam a ser muitas vezes excluídos), os toxicodependentes e alcoólicos, os sem-abrigo etc.).
Pode-se assim dizer que, para lá da cidade normalizada, há um mundo.
Para lá, muitas vezes, num sentido figurado, porque a exclusão faz parte da própria cidade e estamos condenados a esbarrar com ela por mais que a tentemos dessensibilizar. Mas para lá também, outras tantas vezes, em sentido geográfico próprio: porque a cidade produz a exclusão enquanto margem e enquanto marginalidade e não se resigna a que ela continue a ocupar o seu centro. Empurrar os excluídos para a periferia, para longe dos postais turísticos e dos grandes eventos, criar guetos, produzir espaços limpos de sem-abrigo como os centros comerciais são algumas das formas de exclusão geográfica.
Para além disto, sabemos que os/as mais privilegiados/as tendem a barricar-se em condomínios privados de forma a evitar o mais possível cruzarem o seu espaço com o dos excluídos. A sua cidade performativa é aquela que produz eficazmente a invisibilidade da exclusão, que mantém o sonho perverso de varrer para debaixo do tapete todos os indesejáveis.
Refira-se ainda que a exclusão social é também imaterial: é exclusão do conhecimento produzido colectivamente pela humanidade, exclusão das ferramentas para o obter, como por exemplo a iliteracia ou a info-exclusão, e produção de exclusão das capacidades e competência críticas que permitiriam usufruir deste património de conhecimento e também produzir mais conhecimento.
A exclusão social é, ainda, exclusão de um mundo simbólico e de desejo consumista. É, no Ocidente, produção de uma frustração tanto maior quanto se depara com um mundo materialmente rico, disponível, mas que não se consegue alcançar. É, assim, exclusão da auto-estima e do sentimento de capacidade de fazer. Uma exclusão esta que está sempre no coração do ciclo da pobreza.

2- A Pobreza em particular

Relativamente à pobreza em particular, saliente-se que ela é um nó central no tecido da exclusão social. É ela que ameaça todas estas figuras indesejáveis ou “anormais” no sentido de Foucault e ela potenciará muitos dos males sociais que lhes são infligidos.
Olhemos em primeiro lugar para o fenómeno da pobreza no Primeiro Mundo, no mundo dos ricos, e sobretudo em Portugal. A União Europeia, a região em que as desigualdades sociais são menos acentuadas, declarou este ano o “Ano Europeu Contra a Pobreza e a Exclusão social”. Mas não parece: a pobreza atinge 78 milhões de pessoas, isto é, 16 por cento da sua população total (dados incluídos no Eurobarometre sobre pobreza, 2010)
Nem em Portugal parece que estejamos no Ano contra a Pobreza: estruturalmente, um/a em cada cinco portuguesas/es encaixa na categoria de pobre (segundo Alexandre Azevedo Pinto, na revista Vírus número 8). Refira-se que mais de metade das famílias pobres são de trabalhadores e os desempregados são menos de 5% do número de pobres (idem) e que, entre os trabalhadores com mais de 18 anos, cerca de 12% estavam em risco de pobreza em 2007 (SILC, Inquérito Europeu às condições de vida e rendimento, 2008 income data de 2007 – número que significa que ganham menos de 60% do rendimento médio nacional). Conta-se ainda entre os pobres um número significativo de reformados: cerca de dois milhões dos 2,7 milhões de pensionistas vive abaixo do limiar de pobreza (João Romão, Revista transform, versão portuguesa, número 2). Esta pequena amostra de dados deveria ser suficiente para desmontar o discurso de culpabilização do pobre pela sua pobreza que é típico de certas direitas e que conseguiu criar raízes numa parte do senso comum… “O pobre é pobre porque quer, porque não trabalhar, porque é um incapaz.”
E, a esta pobreza estrutural, aquela que permanece constante ao longo de décadas, soma-se, neste ano europeu, a pobreza proveniente da crise provocada pelos exagerados créditos ao consumismo. A história é mais que conhecida: o colapso financeiro de algumas instituições financeiras levou a uma nacionalização das dívidas e essa nacionalização das dívidas deu lugar quer a privatizações de empresas públicas apetecíveis com vista ao seu pagamento quer ao apresentar da conta do desastre aos trabalhadores/as.
Os mais pobres irão pagar esta crise com mais desemprego, com quebras nos salários, com redução das prestações sociais. O Relatório da Rede Europeia Anti-pobreza: Coesão social em risco, o impacto social da crise e do pacote de retoma, Dezembro de 2009 aponta para as consequências graves da crise nos mais pobres: “as despesas extraordinárias decididas pelos governos da EU para salvar os bancos e dar apoio às indústrias em queda aprofundaram o impacto natural da recessão, resultando em deficits públicos enormes. As acções para reduzir o deficit público estão a recair injustamente sobre os pobres.”
E o nosso modelo económico assente até agora em baixos salários, numa precarização forte (e a precarização é a ameaça permanente de pobreza) mas com uma baixa taxa oficial de desemprego vê-se transformado num sistema em que se mantêm estes primeiros dois factores causadores de pobreza a que agora se soma o crescimento do desemprego.

3- As respostas políticas dominantes e a pobreza

Se se pode afirmar que a pobreza é uma questão económica (porque este sistema económico produz riqueza e pobreza), também se pode dizer que as formas do Estado lidar com a pobreza fazem dela uma questão política (da prioridade ou não dada ao combate à pobreza, das escolhas de meios para fazer este combate etc.) Sintetizemos, de forma demasiado esquemática, as linhas políticas principais disponíveis para responder à pobreza no mundo dos ricos.

3.1- O liberalismo é uma posição política e económica tradicional do sistema capitalista que defende um Estado mínimo. Daí que segundo a direita neo-liberal, que foi hegemónica a partir dos anos 80, a intervenção económica e social do Estado seja nociva. Nozick, por exemplo, apresentava os impostos ou qualquer outra forma de intervenção estatal no sentido de redistribuir a riqueza social como um roubo a quem ganha merecidamente dinheiro. Assim, a riqueza ou pobreza seria apenas questão de mérito, de talento ou consequência de escolhas pelas quais se deve responsabilizar cada um e a intervenção do Estado para diminuir o fosso social seria ilegítima. Além do mais, o dogma neo-liberal é de que o mercado livre e sem intervenção, apenas regulado por uma “mão invisível”, geraria naturalmente mais riqueza (já que o Estado estrangularia o investimento) e todos/as ficariam a ganhar com isso. Segundo esta teoria, qualquer apoio aos mais desfavorecidos economicamente deverá ser feito apenas na esfera privada enquanto esmola.
Este permanece, no fundo, o modelo dominante nos EUA (depois da intervenção estatista do New Deal de Roosevelt que se seguiu à crise de 29). Mesmo Obama começou a vacilar em termos de popularidade e teve de introduzir mudanças quando quis alargar a todos os cidadãos o esquema de seguros de saúde privados que deixa de fora milhões de pessoas num país que não conta com um sistema nacional de saúde. Politicamente, Schwarzenegger, o exterminador implacável de impostos, representa o pior da política neo-liberal, tendo levado quase à bancarrota o rico Estado da Califórnia e impondo agora cortes nos sistemas de apoio social de forma a manter impostos baixos, sobretudo para os mais ricos.
E é o eco destas teorias que ouvimos no discurso da direita nacional que afirma que medidas como o Rendimento Social de Inserção ou o Subsídios de desemprego etc. são apenas apoios à preguiça e que defende reduções de impostos sem demonstrar o que isso significa em termos de serviços públicos.
Com a crise internacional, depois de um primeiro momento em que nenhum neo-liberal ousava falar contra a intervenção estatal na economia porque era ao Estado que se pedia que investisse o dinheiro para salvar bancos, voltam agora as receitas neo-liberais a ser cartilha pela qual se regem os planos anti-crise.

3.2- Oposta a esta posição encontrávamos tradicionalmente uma esquerda social-democrata. Nascida dos movimentos operários reformistas da Segunda Internacional, a social-democracia opõe ao paradigma não intervencionista a ideia de que o Estado deve, no interior do sistema capitalista, intervir de forma a redistribuir as riquezas de forma e, nomeadamente, a combater a pobreza.
Ao movimento social-democrata juntou-se a teoria económica de Keynes que pugnava por uma promoção do investimento público e que constituirá a justificação económica de políticas intervencionistas. Este foi o modelo dominante na Europa do pós-guerra, até que Thatcher derrotou a esquerda e se iniciou, também aqui, uma mudança de paradigma que levou muitos dos seus defensores a encontrar uma “terceira via” que nada mais significava que uma capitulação ao liberalismo.
De forma diferenciada, o modelo social europeu, parecia responder mais adequadamente à necessidade de uma redistribuição da riqueza que providenciasse um apoio mais adequado aos mais desfavorecidos. O modelo nórdico de Estado-Providência, chamado Welfare-state, com impostos altos, forte redistribuição social e serviços públicos de qualidade foi o símbolo maior da social-democracia. A social democracia implementou medidas como o Rendimento Social de Inserção (ou Rendimento Mínimo Garantido) e os serviços públicos de educação e de saúde que correspondem a um avanço civilizacional. Apesar de tudo, refira-se que as intervenções social-democratas mantiveram desigualdades económicas fortes e situações de pobreza até no Primeiro Mundo. E mesmo teorias como a “igualdade de oportunidades”, a ideia de que todos teriam direito ao mesmo ponto de partida em termos de condições de vida, sempre foram mais um ideal regulador do que uma realidade, uma vez que estas sociedades continuaram a reproduzir as diferenças sociais. As medidas contra a pobreza surgiram sempre aos olhos dos mais exigentes como medidas justas mas escassas, que não alteravam fundamentalmente as injustiças e que pareciam ser apenas cuidados paliativos que não erradicavam o mal fundamental.
E sublinhe-se principalmente que este equilíbrio redistributivo não correspondeu apenas a uma tentativa política de encontrar um meio termo no capitalismo mas foi, sobretudo, o resultado de uma relação de forças, de lutas fortes lutas sindicais dos trabalhadores e de uma geo-política própria com a pressão do suposto igualitarismo do “socialismo real”. Direito a férias pagas, ao salário mínimo, à reforma, foram conquistados mais do que dados por uma teoria política protectora vinda de uma elite simpática. E assim que a correlação de forças mudou, a elite social-democrata alterou a sua posição política de forma a aproximar-se do liberalismo.
Em Portugal, o Estado-providência nunca passou do estado larvar alcançado depois do 25 de Abril. E desde muito cedo foi a social-democracia do PS que se encarregou de o enfraquecer ou mesmo tentar desmantelar em nome das políticas do FMI e metendo o socialismo na gaveta. Aqui, tal como um pouco por toda a Europa, desfez-se a perspectiva social-democrata e os seus impulsionadores voltaram-se para as receitas de direita apesar de manterem muito da retórica social-democrata: assim é em nome dos serviços públicos que se privatiza e se destrói o serviço público. Sendo hoje o PS aquilo que se designa por social-liberal.
A presente crise acelerou este processo e o Plano de Estabilidade e Crescimento do Governo, colocando o combate à pobreza como primeiro sacrificado, privatizando o mais rentável do sector estatal, reduzindo o investimento público, diminuindo salários, atacando a segurança social, torna-se o principal instrumento desta política. Medidas como a redução progressiva do subsídio de desemprego ou o corte cego de 130 milhões de euros no RSI parecem saídas directamente das cartilhas de Milton Friedman ou de Hayek.
Resistir ao PEC do centrão é uma tarefa política central para quem tenha uma outra perspectiva sobre a justiça social. Ao fazê-lo devemos de ter consciência de que nos encontramos numa situação defensiva. Isto é, a defender medidas que garantidamente não erradicam a pobreza, que são apenas garantias dos mais básicos direitos humanos mas que mesmo essas parecem hoje ser medidas revolucionárias.

4- Capitalismo e pobreza

Últimas notas para olhar para além do Primeiro Mundo e das suas respostas políticas à crise.
A razão profunda da pobreza e das desigualdades sociais está no sistema económico em que vivemos. A permanência das injustiças sociais tem desmentido a possibilidade de um capitalismo de rosto humano. Mesmo se o Norte conseguiu um patamar de riqueza que permite que os mais pobres entre si tenham tido apoios sociais que são impensáveis noutros pontos do planeta, devemos recordar que a “nossa” riqueza é conseguida à custa da pobreza do Sul com a conivência das elites locais, através de mecanismos como o da dívida, através da exploração de matérias primas.
Se alguns dados sobre a pobreza em Portugal eram necessários para desmistificar a ideia do “país de sucesso”, nem sequer será necessário apresentar o óbvio no Sul do Planeta: biliões de seres humanos não têm acesso a água potável, ou a saneamento básico, ou qualquer cuidado de saúde (ainda ontem o jornal Público anunciava, segundo um relatório da ONU-Habitat feito nas vésperas do Fórum Urbano Mundial, que 830 milhões de pessoas vivem em “bairros de lata”...). Dois milhões morrem de fome por dia num mundo que produz hoje o dobro do que seria necessário para toda a população mundial e metade da comida produzida é desperdiçada (segundo o relatório do Programa da ONU para o Ambiente 2009) e produz muito mais do que o planeta pode sustentar. E se falharmos, como se costuma dizer, não há planeta B. Aliás, diz o relatório do PNUD 2007 que as alterações climáticas que estamos a produzir vão, para além de tudo o mais, piorar as desigualdades sociais.
Uma vez que se produz no mundo suficiente riqueza material, fica claro que apenas a desigualdade na distribuição da riqueza justifica a existência de pobreza em larga escala. Acontece que o capitalismo não vive sem o motor da desigualdade brutal e que as elites económicas não aceitam uma justa distribuição de riqueza. Daí que a luta contra esta situação seja um combate profundo por um outro mundo.

Texto-base da intervenção feita num debate sobre Racismo e exclusão social, 20 de Março de 2010, Odivelas

2010-03-24 19:29